segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Dados que indiciam possibilidade de viagem de Melgueiro

Este é o quarto episódio na saga da análise da possibilidade da Passagem do Nordeste ter sido efectivamente realizada por David Melgueiro. Depois de termos introduzido a viagem, verificado os antecedentes, e a cartografia disponível, e antes de passarmos ao post final, analisaremos neste outras evidências que permitem equacionar a possibilidade da realização da viagem.

Edmund Burke, um autor irlandês, no seu Annual Register de 1760, descreve outros pormenores que evidenciam como uma passagem do Nordeste, e a viagem de Melgueiro, era possível:

This testimony is confirmed by several collateral proofs of a north passage to India; the captain aud crew of a vessel called the Epervier, who having suffered shipwreck in 1653, near the islands of Japan, were thirteen years prisoners at Corea, affirm that many of the whales, which they saw in the sea between Corea and Japan, had hooks and harpoons in them belonging to the French and Dutch, who generally fish for these animals at Spitzbergen, the northern extremity of Europe.

Burke vai mesmo mais longe, avançando com relatos da época:

Capt. Wood also reports, in 3 paper published before he performed his voyage, that two Dutch vessels had proceeded as high as lat. 89, which is within one degree of the pole, and there found the sea free and open, though of an unfathomable depth, as appears by four of their journals, which, though separately kept, concurred in this fact, Wood adds, that a Dutchman of great veracity had assured him, that he had even passed under the pole, and found the weather as warm as at Amsterdam. Nor will this appear strange, when it is considered that there being no ice in this part, for the reasons already assigned, the Sun must necessarily give a considerable warmth to the air, by remaining so long above the horizon: so that, upon the whole, the reality of a passage through the North Sea to India seems to be a fact supported by every kind of proof that the subject will admit, except the living testimony of mariners who have made the voyage.

Este último texto é igualmente relatado por Johann Reinhold Forster, no seu livro History of the voyages and discoveries made in the North, nas páginas 426-427.

Sobre o Inverno de 1660-1661, há ainda um relato muito interessante do diário de Samuel Pepys, onde ele relata um Inverno particularmente quente, embora relativo ao Reino Unido, e que poderá ter contribuído para reunir as condições para a viagem de Melgueiro:

It is strange what weather we have had all this winter; no cold at all; but the ways are dusty, and the flies fly up and down, and the rose-bushes are full of leaves, such a time of the year as was never known in this world before here.

Todo este enquadramento permitiu a alguns historiadores equacionar a possibilidade de que esta viagem de David Melgueiro tenha sido efectivamente possível. Talvez a mais reconhecida dessas opiniões seja a de Damião Peres, que na sua "História dos descobrimentos portugueses" de 1943, nos descreve (com realces da minha responsabilidade):

Viagem de David Melgueiro sob bandeira holandesa
Em 1701, o oficial da marinha francesa La Madelène, que se achava em Portugal ao serviço da diplomacia do seu país, como agente secreto, comunicou ao Conde de Pontchatrain sensacionais notícias relativas a uma viagem do Japão para Portugal, realizada, através do Oceano Ártico cerca de quarenta anos antes, por um navio holandês cujo comando era exercido pelo capitão português David Melgueiro. A dita embarcação, que se chamava O Pai Eterno, saíra do Japão em 14 de Março de 1660, correra a costa da Ásia para o norte, atingira cerca de 84° de latitude setentrional, e daí fora até às vizinhanças da Spitzberg, donde, passando entre esta ilha e a Gronelândia e por oeste da Escócia e da Irlanda, viera demandar a foz do rio Douro. No Porto veio a morrer, por 1673, o dito capitão português, como testemunhava um marinheiro do Havre, que aí então ainda o vira.
A carta de La Madelène onde tais informações se encontravam, datada de 14 de Janeiro de 1701, foi publicada em 1853 pelo geógrafo Filipe Bouache numa memória intitulada Considérations geographiques et physiques sur les nouvelles découvertes au Nord de la grande mer appellée vulgairement la Mer du Sud avec des cartes qui y sont relatives, cuja substância se repetiu no ano seguinte num artigo das Memoires de Mathematique et de Physique tirées des registres de l'Académie Royale des Sciences.
Publicando a referida epístola, Buache mostrou-se convicto de que Melgueiro descobrira de facto uma nova via de comunicação entre os oceanos Pacífico e Atlântico - a chamada passagem de nordeste - percorrendo o Ártico de leste a oeste, após ter ali penetrado pelo estreito que separa a Ásia da América, estreito que ele, Buache, vira representado num mapa português, existente em Paris, desenhado em 1649 pelo cartógrafo Teixeira.
A opinião de Buache não logrou geral aceitação, combatendo-a sobretudo o geógrafo Nordenskiold, alegando: a) ser inverosímil a facilidade com que a viagem fora feita; b) não atingir a latitude de 84 graus boreais a costa asiática, que a epístola de La Madelène dizia percorrida até aí.
Sem dificuldade alguma desfez Jaime Batalha Reis - ao divulgar em Portugal, há meio século, os estudos de Buache - os argumentos de Nordenskiold, afirmando: a) que nada se sabe a respeito das facilidades ou dificuldades encontradas durante a viagem, pois quanto a isso é totalmente omissa a breve notícia redigida por La Madelène; b) que nela não se afirma ter sido costeada a Asia até 84º Lat. N., mas sim o navio correra ao norte até 84 graus, tendo primeiro acompanhado a costa.
Recentemente, mostrou-se também pouco inclinado a aceitar como realmente seguido por Melgueiro o dito itinerário um historiador português - o Visconde de Lagoa. Para este autor são suspeitas as condições em que a notícia da viagem de Melgueiro se tornou conhecida: fixada, tardiamente, por «um tal M. La Madelène, oficial de marinha francês em serviço de espionagem diplomática em Portugal, notícia, por seu turno, inspirada na outiva de um marinheiro do Havre que residiu no Porto e foi íntimo confidente de Melgueiro, a cujos derradeiros momentos assistiu», não tendo havido, por parte dos holandeses, qualquer esforço de propaganda dum tal efeito, que os honraria tanto como aos portugueses, mas antes, como até já La Madelène supunha, um deliberado propósito de ocultar o relato coevo, decerto redigido. Quanto à citação do mapa de João Teixeira, feita por Buache, crê o Visconde de Lagoa haver nela um equívoco, devendo tratar-se não dum mapa do dito cartógrafo português, mas sim duma das cartas do atlas anónimo atribuído a Baptista Agnese, de que existe um exemplar na Sociedade de Geografia de Lisboa, e na qual «se vê, de facto, o traçado da viagem em questão».
Observaremos, quanto a esta última afirmação, que no referido mapa atribuído a Baptista Agnese está de facto marcada uma viagem em regiões nórdicas, entre o Extremo-Oriente e um porto setentrional da costa ocidental da Península Ibérica, o qual bem pode ser o Porto. Simplesmente, tal percurso de nenhum modo corresponde à descrição da viagem que se atribui a Melgueiro, realizada pelo norte de Ásia e da Europa, ao passo que aquele liga o Pacífico ao Atlântico pelo norte da América setentrional, parecendo corresponder à discutida viagem de Maldonado (1588), em que se diz ter tomado parte o piloto português João Martins. De resto, o que Buache afirmou não foi que um percurso como o de Melgueiro se encontrava traçado num mapa português de 1649, mas sim que neste se via marcado o estreito existente entre a Ásia e a América do Norte; ora esta modesta afirmação nada tem de extraordinário, pois esse estreito, com a denominação de Aniam, se encontra efectivamente em muitas cartas anteriores à data em que se diz feita a viagem de Melgueiro. E até, quanto a nós, o facto de já se conhecer tal estreito, dá verosimilhança à iniciativa atribuída a Melgueiro, que por ele se meteria à busca duma passagem para a Europa, muito mais curta do que a habitual através do Pacífico, do Índico e do Atlântico.
No entanto, tem de reconhecer-se que não constitui prova documental suficiente para uma afirmação absoluta o documento de La Madelène, publicado por Buache, e que a extrema dificuldade duma extensa viagem pelas águas do Ártico, semeadas de gelos, põe de sobreaviso contra optimismos de aceitação. Contudo, nem esta extrema dificuldade significa impossibilidade — não só porque pode crer-se na eventualidade de terem existido condições meteorológicas excepcionais, como sobretudo porque as águas do Ártico correm para oeste pelo norte da Ásia e da Europa, — nem quanto ao documento invocado e à sua autoria se divisa qual o móbil determinante duma fraude. E assim, sem poder afirmar-se peremptoriamente que o descobrimento da passagem do nordeste foi feito em 1660 pelo capitão português David Melgueiro, nada impede de crer que tão sensacional feito foi efectivamente realizado.

Este pormenor das correntes do Árctico é hoje confirmada em vários sites. A análise das correntes favorece naturalmente uma Passagem de Nordeste de este para oeste, sobretudo dadas as características dos navios da época.

Igualmente curioso é o facto do mapa de Spitsbergen de Blaeu, de 1662 (imagem retirada daqui e visível abaixo), ser o primeiro que mapeia a costa norte de Spitsbergen. Note-se que as referências à viagem de Melgueiro referem que ele terá passado entre Spitsbergen e a Gronelândia, pelo que teria tido que fazer a viagem pela costa norte de Spitsbergen. Ainda assim, mesmo que não tenha qualquer relação com Melgueiro, evidencia como era conhecido que aquelas águas ficavam livres do gelo polar durante o Verão.



Nota: Este post foi integrado numa página onde se relata toda a investigação efectuada sobre David Melgueiro: ecotretas.blogspot.com/p/david-melgueiro.html